O velho médico
O médico aposentado estava sentado na cadeira da cozinha, os braços apoiados na mesa e, á sua frente, uma caneca de café com leite, que bebericava vagarosamente e na qual amolecia as torradas que comia.
Enquanto mastigava sem pressa, pensamentos borboleteavam na mente do velho doutor.
Lembrou-se de que, no início da carreira, ainda dava toda a atenção ao paciente, conversando bastante, colhendo informações valiosas para o seu tratamento, palpando-o, tocando-o com as mãos, toque este que parecia fazer parte da cura, como as mãos divinas do cristo a curar lázaro.
O tempo foi passando, a tecnologia crescendo, veio a ultrassonografia, a tomografia computadorizada, a era digital, e o paciente foi se transformando em número:
-é o paciente do leito trinta da pediatria do pavilhão dois - diziam no hospital, não era mais o Joãozinho.
Não que a tecnologia fosse má, pois esta já descobriu muitas doenças quando ainda tratáveis. O problema estava na tecnologia mal usada, que devassou os meandros do corpo e encobriu as belezas da alma.
Lembrou-se também da pressa. Quanta pressa tivera na correria do dia a dia, indo do consultório ao hospital, aos plantões e aos vários empregos. Nem tivera tempo para si e para sua família.
Tinha tanta pressa que o tempo também acelerara. Os filhos cresceram tão rápido, nem pôde levá-los ao primeiro dia de aula, nem à primeira comunhão. Quantas vezes prometera ensiná-los a andar de bicicleta...
Tantas que acabaram aprendendo sozinhos. E a casa de bonecas no quintal que nunca construiu?
Vieram os netos, e tudo se repetiu. Cresceram, e ele nem percebeu.
Até o gato, quando vinha se aconchegar, ronronando, ao seu lado, era espantado, pois o doutor não queria pegar toxoplasmose e, muito menos, ser atrapalhado em seus estudos quando estava de “folga” em casa.
Agora, aos seus noventa anos, estava ali, sozinho, pois a esposa já falecera, os filhos e netos há muito haviam voado para fora do ninho e, assim como ele nunca sentira falta deles, também são sentiam a falta de um velho esculápio tomando café com leite e torradas. Por sua mente vieram versos mal lembrados de Drummond:
E agora, doutor?
A festa acabou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora, doutor?
Doutor, para onde?(livre adaptação dos versos de josé, do poeta Carlos Drummond de Andrade).
Comeu mais um pedaço de torrada e café com leite. Agora, sem pressa, tinha todo o tempo do mundo, mas não tinha mais o mundo para preencher seu tempo.
Pensou que tudo o que aprendera em medicina também não significava mais nada, tudo estava ultrapassado: o novo conhecimento substituíra o antigo.
Empurrou a caneca de café com leite para o lado, colocou a testa sobre os braços cruzados em cima da mesa e assim ficou, até que duas lágrimas rolaram pela sua face.
A vida fora em vão...
Sob a forma de uma borboleta azul, um pensamento, aos poucos, veio se aproximando, titubeante. Mas foi crescendo, até iluminar sua mente como um clarão multicolorido. A borboleta se transformou naquela pacientizinha de quatro anos que há mais de seis décadas não pudera salvar e que, em seus últimos momentos de vida, beijara-lhe a face e derramara algumas lágrimas, tocado pela compaixão.
Sorriu, montou nas asas da borboleta, deixou seu casulo e voou, voou até desaparecer no horizonte da vida.
Cássio Camilo Almeida de Negri
Médico
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